quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Mikado Humano

A minha amiga Rute Marinho, jornalista da Rádio Nova e escritora noite dentro (embora este último ofício ainda seja segredo), acedeu ao meu pedido. Deu-me a honra de escrever umas palavras no Maisena. E o meu desejo foi concretizado da maneira mais terna que há: esta Mãe escreveu sobre o seu mikado humano com uma humildade que comove qualquer um.. Fiquei apaixonada por esta expressão: mikado humano. Define na perfeição aquilo que todos sentimos quando os nossos mini-eu  nos invadem a cama. São palavras sinceras de quem vive de coração aberto, e de alma renovada. Sem tabus nem preconceitos. Assim é a minha amiga Rute e a sua ideia de co-sleeping,

"Uma das melhores e mais reconfortantes recordações que guardo – primeiro como filha – é a dos sonos que fiz na cama do quarto dos pais.
Basta-me puxar a fita da memória atrás e a imaginação instalar-se naquele local sagrado para conseguir sentir o calor do corpo da minha mãe, nas noites em que o meu pai chegava mais tarde a casa. Numa dessas noites começou a guerra no Iraque. A primeira. Tinha começado nesse sítio que desconhecia e na televisão pequenina e amarela colocada por cima da cómoda do quarto porque, naquele instante e no meu mundo, existia apenas eu e a minha mãe no lugar mais seguro e quentinho do planeta. Nessa noite, assim como em todas as outras, a chegada do meu pai a casa era imediatamente seguida da minha ordem de despejo. Podia suplicar, fazer de conta, inventar doenças que nada, mesmo nada, nem o mais credível dos argumentos, impedia a minha saída. Jamais impediu.
Uma vez mais, também me bastava puxar a fita atrás, para conseguir sentir o frio dos lençóis quando na minha cama me deitava. Escondia-me debaixo deles e expelia um bafo quente para aquecer as mãos até embalar no sono.
Na altura não entendia como podia a minha mãe fazer-me “aquilo”. É que à luz dos tempos que relato, e não no momento em que escrevo, as casas não tinham aquecimento central, nem a televisão mais do que dois canais. Havia aquecedores, sem dúvida, mas ligados às tomadas, aqui e ali nos corredores, e o “televisor”, se por acaso o tivesse no quarto, como hoje existe em todas as divisões, e se o ligasse, como hoje se mantém apesar da espectacular invenção do temporizador, estaria certamente a difundir a mira técnica. Outro fenómeno que se perdeu nos tempos em que dormia na cama dos meus pais.
Hoje a cama do quarto dos pais é a minha. Eu que sou a mãe de dois filhos: Uma menina de quatro anos e um rapaz de seis. Eu sou a mãe, eles os filhos e nenhum recebe ordem de expulsão porque não há quem venha depois.
Eles sentem-se mais seguros e eu tenho os meus “forninhos” por perto. Win/win.

Mesmo havendo aquecimento central, uma televisão no quarto, infindáveis canais com uma programação que se estende além das 24 horasm, esta mãe tem sonos agitados e torcicolos constantes provocados pela má posição durante o sono e, sobretudo, pelo espaço exíguo conferido no colchão. É que, muito embora a nova “cama dos pais” tenha uma dimensão bem maior do que as da guerra do Iraque, 80 por cento do rectângulo é ocupado pelo filho que dorme de cabeça para baixo e pela filha que, sobre todo este mikado humano, se atravessa à largura, e com os pés na cara da mãe. É assim agora e pouco me estou importando com as teorias que defendem que deveria ensinar-lhes o caminho para a cama deles e que lá deveria ficar, com eles, até que adormecessem, sob pena de lhes retirar a autonomia. Pouco me importa, desculpem os que se importam. Dormir com os meus filhos não é uma ameaça à independência. Nem à deles e muito menos à minha, mas sim uma grande conquista de horas que posso passar com eles enquanto ainda são pequeninos. Dormir com aqueles dois trapezistas nocturnos é a certeza de um dia olhar para trás e dizer: Uma das melhores e mais reconfortantes recordações que guardo – primeiro como filha e depois como mãe – é a dos sonos que fiz na cama do quarto dos  pais"


Obrigada Rute. Obrigada por estas tuas palavras reconfortantes! Depois disto, vamos querer dormir agarradinhos aos nossos filhos para todo o sempre!

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